Professores de Alunos com Deficiência Mental:
Formação e Concepções
Luciana Pacheco Marques
(UFJF)
A
literatura educacional tem demonstrado os sucessivos fracassos a que
tem sido exposta a educação brasileira. Inúmeras
tentativas vêm sendo realizadas no sentido de se melhorar o nível
dos processos de ensino e de aprendizagem sem que, no entanto, resultados
satisfatórios sejam atingidos. A dificuldade não passa,
a princípio, pela não identificação das
causas dessa herança de fracassos. Dentre elas destacamos: a
má-formação dos profissionais da educação;
a desvalorização da profissão de professor e a
conseqüente baixa remuneração de suas atividades;
o pouco investimento em programas de educação continuada
para os professores em exercício; o papel de legitimadora dos
valores sociais vigentes desempenhado pela escola.
Considerada por Demo (1992) como o fator mais importante para a qualidade
da educação básica, a formação de
professores encabeça a relação dos problemas a
serem enfrentados por todo o sistema educacional brasileiro. Ao se referir
aos altos índices de evasão verificados no Brasil, esse
autor atribui o fato, em parte, aos baixos teores qualitativos do sistema
educacional e, em especial, à má-formação
do professorado nele atuante. Afirma ainda que as crianças pobres
e culturalmente indigentes aproveitam precariamente os frutos do sistema
educativo, em função principalmente dessa má qualificação
dos professores. Critica, por fim, a concepção das instituições
responsáveis pela formação de professores, em especial
o arcaísmo de seus currículos, baseados principalmente
na reprodução do conhecimento, sem que se valorizem a
investigação e a produção do conhecimento
por parte dos alunos. Nesta mesma direção, Mello (1986)
já havia constatado a precariedade da qualidade dos cursos de
formação de professores, afirmando que tal deterioração,
nas últimas décadas no Brasil, chegou a níveis
alarmantes.
Os problemas vividos pelos alunos durante o processo educacional se
agravam diante da constatação de que a quase totalidade
dos professores em exercício desempenha suas atividades a partir
da precária formação recebida nos cursos secundários
ou mesmo nos cursos superiores por eles freqüentados. Soma-se a
esse fato a escassez de oportunidades de reciclagem e aperfeiçoamento,
o que representa um grande obstáculo para a melhoria de suas
práticas, contribuindo para que suas concepções
e seus conhecimentos se cristalizem cada vez mais, comprometendo sua
capacidade de reflexão e a disposição para a mudança.
Collares e Moysés (1995, p. 96) enfatizam a precariedade do sistema
educacional brasileiro em relação à má-formação
de seus professores, ressaltando que:
A situação se agrava quando este professor entra no
mercado de trabalho, principalmente na rede pública, e encontra
uma instituição regida por uma política de desvalorização
profissional do professor, que se concretiza através de baixos
salários e da deterioração das condições
de trabalho, com carga horária excessiva e múltiplos vínculos
e jornadas. Tudo isso acrescido pela inexistência de uma política
de capacitação docente.
Demo (1992) alerta para a necessidade crescente de pensar em uma educação
permanente para os professores, em decorrência principalmente
da velocidade com que as mudanças vêm ocorrendo na Atualidade.
Os avanços tecnológicos e a produção acelerada
do conhecimento exigem, cada vez mais, uma permanente atualização
profissional.
A questão fica ainda mais complicada quando se introduz na discussão
a necessidade de se educar com qualidade e competência os alunos
que se afastam, por motivos os mais diversos, dos padrões de
normalidade construídos e veiculados na sociedade. A escola que
temos hoje, no Brasil, está aparentemente preparada para receber
e trabalhar com alunos de boa capacidade cognitiva, sem problemas de
saúde, que podem adquirir o material didático solicitado
e outros complementares, que possuem uma família que os auxiliem
em suas atividades escolares e extraclasses, ou seja, que podem caminhar
com êxito com o apoio da escola, sem o apoio da escola, ou apesar
do apoio da escola.
Ao denunciarem o sistema educacional brasileiro como um poderoso agente
social de marginalização, Sant'Anna (1988) e Marques (1994
e 1998) destacam os altos índices de evasão e repetência
como prova do processo de seletividade feito pela escola, ao privilegiar
a linguagem, as normas e os conteúdos que retratam o modo de
vida da classe dominante, em detrimento das classes populares e/ou das
categorias desviantes dos padrões de normalidade, estando incluídos
aqui os alunos com deficiência.
Herdeiros do mesmo legado educacional e oriundos das mesmas instituições
formadoras de recursos humanos para a educação, os professores
dos alunos com deficiência experimentam dificuldades similares
às enfrentadas por seus colegas de profissão, independente
da clientela com a qual trabalham. Tiveram uma formação
calcada no reprodutivismo e na mera transmissão do conhecimento
(Mantoan, s.d., Bereohff, 1994; Bueno, 1994; Masini, 1994; Nunes e Ferreira,
1994); recebem parcos salários e são desvalorizados profissionalmente,
muito embora sejam reconhecidos como abnegados guardiões de "crianças-problemas"
(Mazzotta, 1993; Fonseca, 1995; Carvalho, 1997); sofrem da falta de
oportunidades de se reciclarem, devido principalmente à precariedade
da política de capacitação docente, tornando-se,
muitas vezes, importantes veículos de difusão e de manutenção
da ideologia da classe dominante, à qual, em geral, não
pertencem.
Sabemos que, a partir das relações estabelecidas ao longo
de sua vida pessoal, de sua formação profissional e de
sua prática pedagógica, o professor de alunos com deficiência
constrói sentidos que retratam o seu modo de ser e de agir, suas
concepções.
Será que, em sua formação, os professores dos alunos
com deficiência mental têm sido expostos aos diferentes
sentidos sobre a deficiência? Têm clareza de suas próprias
concepções?
Dentre as conclusões do Grupo de Trabalho sobre Formação
de Professores em Educação Especial do VII Ciclo de Estudos
sobre Deficiência Mental, organizado pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação Especial da Universidade Federal de São
Carlos, em 1993, identificou-se que os cursos de formação
de professores especiais ignoram, via de regra, as concepções,
repletas de estereótipos e preconceitos, sobre o fenômeno
da deficiência trazidas por seus alunos, sugerindo que tais cursos
deveriam avaliar essas concepções, substituindo-as por
outras mais realistas e otimistas sobre a deficiência.
Quais concepções têm sido apontadas como subjacentes
à prática pedagógica dos professores de alunos
com deficiência mental?
Nunes e Ferreira (1994), buscando resgatar as tendências mais
recentes subjacentes ao trabalho educacional com alunos com deficiência
mental no Brasil, apontam quatro modelos psicopedagógicos distintos:
a psicomotricidade, o construtivismo piagetiano, a análise do
comportamento e o sociointeracionismo vygotskiano. Seus estudos basearam-se
numa vasta revisão de literatura dos trabalhos científicos,
principalmente dissertações e teses elaboradas, no Brasil,
na área da Educação Especial, nos últimos
quinze anos.
Tunes, Souza e Rangel (1996) procuraram identificar as concepções
relacionadas à prática com a pessoa com deficiência
mental, tendo como referencial os três estágios evolutivos,
identificados por Pessotti (1981, 1984), na evolução das
concepções de deficiência mental: o teológico,
o metafísico e o científico. O estudo consistiu na realização
de reuniões com seis profissionais da rede oficial de ensino
de Brasília/DF, com experiência mínima de cinco
anos em Educação Especial, onde tópicos relativos
à questão da deficiência mental foram discutidos.
Concluíram que as visões metafísica e científica
têm penetração uniforme no grupo pesquisado, não
tendo ocorrido falas relativas à concepção teológica,
o que ratifica a posição de Pessotti (1981) da não
existência de uma passagem linear pelos estágios, mas sim
de uma coexistência dos mesmos.
Kassar (1993, p. 7 e 1995, p. 14) objetivou "conhecer as imagens
e as concepções que as professoras têm a respeito
da Deficiência Mental, dos seus próprios alunos e do seu
próprio trabalho". A autora tomou como pontos de referência
a existência de uma visão fragmentada de homem e sociedade,
sustentada por uma ideologia que pressupõe uma visão de
mundo a-histórica e mecanicista; a manutenção de
uma visão idealizada, naturalística e apriorística
de homem e sociedade, próprias de uma fundamentação
positivista; o fato da análise da relação homem/mundo
se dar de forma diretiva e não dialética e as limitações
colocadas pelas concepções de deficiência mental
existentes. A pesquisa consistiu na realização de entrevistas
abertas, com oito professoras de classes especiais da rede pública
dos municípios de Corumbá e Ladário/MS. Apontou,
ao final, os seguintes aspectos: a fala das professoras se referia tanto
ao aluno com deficiência mesmo quanto ao aluno com aprendizagem
lenta; a segregação sofrida tanto por parte dos alunos
quanto de suas professoras; uma prática similar ao tradicionalismo
do ensino regular; as classes especiais não têm cumprido
seu papel socializador, de transmissoras da cultura historicamente construída,
atendendo a clientela que deveria estar nas classes regulares; a necessidade
de se discutir o específico e o não-específico
na Educação Especial. Concluiu que, pelas falas muitas
vezes contraditórias das professoras vislumbra-se a superação
da visão tradicional predominante, sendo possível buscar
outros fundamentos para o seu fazer pedagógico.
E, assim, por perceber que urge, diante deste quadro situacional, melhorar
a qualidade da formação dos professores de alunos com
deficiência mental e, conseqüentemente, sua prática
pedagógica, traçamos como nossos objetivos, para esta
pesquisa realizada entre 1997 e 2000:
1-Compreender os efeitos de sentido do discurso dos professores de alunos
com deficiência mental, enfocando suas concepções
e o trabalho que realizam em sala de aula para que seus alunos aprendam
e se desenvolvam.
2-Analisar o discurso do professor de alunos com deficiência mental,
movimentando-os em relação às concepções
de deficiência mental e às diferentes abordagens psicológicas
que constituem seu discurso.
3-Explicitar os gestos de interpretação que determinam
a relação do professor de alunos com deficiência
mental com esse aluno e o seu saber.
Utilizamos como referencial metodológico a análise de
discurso na perspectiva de Orlandi (1987, 1990, 1992, 1993, 1995, 1996,
1998), uma vez que tal estudo contribui para que a prática com
pessoas com deficiência possa ser repensada em sua historicidade,
não como sucessão de fatos históricos, mas como
produção de sentidos, tendo em vista a determinação
histórica de sua produção.
Dessa forma, inicialmente nos detivemos na historicização
da construção das diferentes concepções
de deficiência existentes. A seguir, fizemos uma discussão
sobre a diferença. Discutimos, depois, o behaviorismo, o humanismo,
a gestalt, o construtivismo de Jean Piaget e a teoria sócio-histórica
de Vygotsky, abordagens psicológicas que apontam para diferentes
concepções de sujeito, desenvolvimento, aprendizagem,
deficiência e, conseqüentemente, subsidiam diferentes práticas
pedagógicas, respaldando ou não o processo de inserção
do aluno com deficiência mental na sala de aula regular.
Selecionamos, então, 12 professoras do ensino infantil ou fundamental
de Juiz de Fora/MG, em cujas turmas houvesse, pelo menos, 1 aluno com
deficiência mental, que faziam parte do ensino especial ou regular,
público ou particular, assim distribuídas:
3 professoras de alunos com deficiência mental de escola especial
pública;
3 professoras de alunos com deficiência mental de escola especial
particular;
3 professoras de alunos com deficiência mental de escola regular
pública;
3 professoras de alunos com deficiência mental de escola regular
particular.
Nomeamos as professoras e suas respectivas turmas por EPb1, EPb2 e EPb3
(escola especial pública); EPa1, EPa2 e EPa3 (escola especial
particular); RPb1, RPb2 e RPb3 (escola regular pública) e RPa1,
RPa2 e RPa3 (escola regular particular).
O corpus foi delimitado a partir de um questionário aplicado
às professoras; dos dados diagnósticos e históricos
dos alunos com deficiência mental das turmas dessas professoras;
da observação de quatro atividades desenvolvidas pelas
mesmas com suas turmas durante um mês; de uma entrevista feita
com cada uma dessas professoras, e do planejamento que serviu de base
para suas aulas. As atividades observadas e as entrevistas foram filmadas
e, posteriormente, transcritas.
A análise foi realizada, inicialmente, com vistas a desvelar
os sentidos cristalizados por cada professora, para, a partir daí,
compreenderrmos o funcionamento dos seus discursos.
Quanto à formação das doze professoras sujeitos
da pesquisa, as mesmas haviam concluído o curso de Magistério,
em nível médio, há pelo menos doze anos. Seis tinham
nível superior de escolaridade, tendo quatro delas feito o curso
de Pedagogia e duas licenciatura em Estudos Sociais. Dessas seis professoras,
cinco tinham feito curso de especialização, sendo três
em Psicopedagogia, uma em Psicomotricidade e outra em Alfabetização
e Linguagem. Esta última estava cursando, na época, o
Mestrado em Educação, na área de concentração
Conhecimento, Linguagem e Educação.
Das doze professoras, seis deram continuidade aos estudos em nível
superior, após terem concluído o curso de Magistério,
o que nos levaria a pensar que possuíam uma capacitação
adequada para o exercício de sua profissão, não
fosse a precariedade da qualidade dos cursos de formação
de professores, conforme constatações de Mello (1986)
e Demo (1992), dentre outros. O fato de as outras seis professoras,
após concluído o Magistério, terem ingressado no
mercado de trabalho e ali estagnado, comprova os dizeres de Collares
e Moysés (1995), apresentados na introdução deste
estudo, sobre o agravamento da situação de má-formação
dos professores quando, ao começarem a trabalhar, encontram instituições
regidas por políticas de desvalorização profissional,
sem incentivo à capacitação docente.
No que se refere a cursos de aperfeiçoamento, atualização
ou extensão e eventos na área específica da Educação
Especial, apenas as professoras vinculadas ao ensino especial já
tinham feito alguns. As seis professoras do ensino regular não
haviam freqüentado nenhum curso dessa natureza. Já em relação
à participação em projetos de pesquisa e/ou extensão,
apenas uma das professora do ensino especial participara de um projeto
de extensão, vinculado à Educação Especial,
na escola regular onde trabalhava, em outro turno.
Também poderíamos supor que a realização
constante de cursos de aperfeiçoamento, atualização
ou extensão e/ou a participação em eventos e projetos
na área da Educação Especial poderiam ter ampliado
a capacitação das mesmas para o ensino de alunos com deficiência
mental. Porém, além de a metade das professoras não
ter feito essa complementação, ainda existe mais um fator
agravante, conforme constataram diversos autores como Mantoan (s.d),
Bereohff (1994), Bueno (1994), Masini (1994), Nunes e Ferreira (1994):
no geral, a formação dos professores de alunos com deficiência
é de má-qualidade e calcada na reprodução
do conhecimento.
Quanto à relação entre a formação
recebida e a atuação profissional, das seis professoras
do ensino especial, apenas uma acreditava não ter sua formação
interferido em nada na sua atuação profissional. As demais
pensavam que tal relação sempre se estabelece, uma vez
que, em qualquer nível de formação, há a
possibilidade de adquirir novos conhecimentos e poder avaliar o trabalho
que está sendo realizado. Enfim, qualquer curso era considerado
pelas professoras como válido para aprimorar a sua prática.
Já entre as seis professoras do ensino regular, apenas duas pensavam
como essas últimas. A professora RPb2 foi enfática ao
dizer: - A falta de conhecimento, de estudo, traz insegurança
na hora de trabalhar. Eu não sei como agir, ajudar, avaliar.
As quatro restantes acreditavam não ter havido influência
da sua formação na atuação profissional
com alunos com deficiência mental, posto que tal assunto nunca
fora abordado nos cursos por elas realizados.
A dicotomia entre a formação e a atuação
profissional é algo que vem sendo apontado por diversos educadores
(Nóvoa, 1997 e 1995, Schön, 1997, Gómez, 1997, Zeichner,
1997, Perrenoud, 1993, Sacristán, 1995, dentre outros). As professoras
sujeitos da pesquisa fizeram essa denúncia, ratificando a necessidade
de uma reformulação urgente na formação
de professores, tanto na dimensão da formação inicial,
quanto na da formação continuada. Complementando a discussão,
Mantoan (1997a) aponta a inexistência de uma formação
inicial que contemple questões relativas ao ensino de pessoas
com deficiência.
Ao se referirem à relação que sempre se estabelece
entre a formação e a atuação profissional,
sete das professoras, sendo cinco do ensino especial e duas do ensino
regular, o fizeram com base no senso comum de que tudo o que se aprende
ajuda de alguma forma no desenvolvimento da atividade docente. Sabemos,
no entanto, que a questão é mais ampla, devendo a relação
entre teoria e prática superar o modelo convencional de formação
criticado por Schön (1997, p. 91) e outros, segundo o qual "Primeiro
ensinam-se os princípios científicos relevantes, depois
a aplicação desses princípios e, por último,
tem-se um practicum cujo objectivo é aplicar à
prática quotidiana os princípios da ciência aplicada".
Autores como Nóvoa (1997 e 1995), Schön (1997), Gómez
(1997), Zeichner (1997), Perrenoud (1993), Sacristán (1995) e
Mantoan (1997a) têm sugerido uma formação que contemple
uma prática reflexiva, onde a praxis é definida como o
lugar de produção da consciência crítica
e da ação qualificada, não havendo separação
hierárquica entre o que se pensa e o que se faz.
Uma professora nunca entrara em uma sala de aula regular de ensino;
três atuavam nos dois tipos de ensino, mas não estabeleciam
relação entre eles; outras recebiam alunos com deficiência
mental em suas salas de aula sem terem feito nenhuma discussão
mais aprofundada sobre suas semelhanças e peculiaridades. A dicotomia
entre as categorias de ensino ficou evidente e demonstrou que ainda
estamos utilizando o processo de integração/mainstreaming,
que se traduz por uma estrutura denominada "sistema de cascata",
onde o aluno transita no sistema, do ensino especial à classe
regular. A superação do mesmo implicaria, necessariamente,
a fusão do ensino regular com o ensino especial (Stainback e
Stainback, 1984, Mantoan, 1997b) e a substituição do "sistema
de cascata" pelo "caleidoscópio", que é
a metáfora da inclusão, onde se estruturaria o sistema
educacional em função das necessidades de todos os alunos
(Forest e Lusthaus, 1987, Mantoan, 1997b).
Entre as professoras do ensino especial, o conhecimento adquirido para
lidar com o aluno com deficiência mental adveio principalmente
de cursos, das leituras realizadas e da experiência escolar. Também
contribuíram a experiência familiar e a troca com os pais
dos alunos com deficiência mental. Já para as professoras
do ensino regular, o que contribuiu primordialmente foi a experiência
acumulada no magistério e, em segundo lugar, as leituras por
elas realizadas. Também foi citada a existência de pessoas
com deficiência na família, como fator contribuinte.
Fatos diversos concorreram para o trabalho dessas professoras com alunos
com deficiência mental. Dentre as professoras do ensino especial
duas não citaram nenhum fato em particular. As demais escreveram:
Tive um aluno deficiência mental na sala regular e procurei
me especializar nesta área (EPb1); Transmitir meu amor,
carinho, compreensão, fé, conhecimento e poder vibrar
dia após dia com a aprendizagem de cada aluno (EPb2); Tenho
um familiar que trabalha com ed. especial e que me incentivou (EPb3);
Sempre dei aula para crianças "normais", mas não
consegui me realizar; depois, quando comecei a trabalhar aqui vejo minha
profissão de outra forma (EPa1). Já entre as professoras
do ensino regular não foi citado nenhum motivo especial para
receberem alunos com deficiência mental em suas turmas regulares.
Pudemos observar que duas das professoras, EPb2 e EPa1, ainda utilizaram,
em seus textos, termos como amor, carinho, realizar, que denota o sentido
paternalista da deficiência, tão cristalizado na sociedade
e nas escolas especiais. Já a professora EPb1, após tomar
contato com um aluno com deficiência mental no ensino regular,
transferiu-se para o ensino especial, a fim de se especializar nesta
área. A professora EPb3 estava tão fortemente marcada
pelo sentido da exclusão que, ao ser incentivada para o trabalho
com educação especial por um familiar, não se questionou
sobre a possibilidade de trabalhar com essa clientela no ensino regular.
Desde então passou a trabalhar no ensino especial onde se excluiu
com seus alunos. As demais professoras do ensino especial não
se referiram a seus motivos. Este silêncio explicitou o não
entendimento dessas professoras de estarem participando do processo
de exclusão dos alunos com deficiência mental. As professoras
do ensino regular também silenciaram. O silêncio dessas
professoras evidenciou, no entanto, que não fora escolha delas
o trabalho com alunos com deficiência mental, mas um acaso por
serem professoras daquelas séries, daquelas escolas, naquele
momento em que alunos com deficiência mental foram ali matriculados.
Sintetizando as condições de produção do
discurso das professoras, constatamos terem elas feito cursos de formação
inicial e continuada, que dicotomizavam a teoria e a prática
educacionais, e fazerem parte de um sistema educacional que mantinha
um ensino especial paralelamente a um ensino regular. Assim sendo, a
inserção dos alunos com deficiência mental no ensino
regular ocorria dentro do chamado "sistema de cascata", no
qual os alunos são distribuídos nas classes das escolas
especiais ou nas salas regulares, em função de critérios
preestabelecidos de desempenho escolar. A seriação escolar
de tais alunos era determinada pelo aproveitamento escolar nos conteúdos
de leitura, escrita e cálculo, o que os mantinha na série
final do ensino infantil ou na primeira série do ensino fundamental.
Nessas condições, as professoras situaram seus discursos
sobre os sujeitos e, mais especificamente sobre os sujeitos com deficiência
mental, enquanto sujeitos do mundo e sujeitos do conhecimento, em diversas
formações discursivas, sendo a envolvimentalista a mais
expressiva, embora tenhamos encontrado também todos os outros
sentidos - preformista, predeterminista e interacionista - historicamente
construídos.
O discurso das professoras de alunos com deficiência mental sobre
os processos de desenvolvimento, de aprendizagem e de sua inter-relação
teve como ponto de referência o déficit biológico,
o qual determinou a filiação dessas mesmas professoras
a uma ou outra formação discursiva em relação
a esses processos. Quando uma professora entendia que o déficit
biológico seria algo impeditivo para o aluno com deficiência,
ao falar do processo de desenvolvimento, situava-se numa posição
subjetivista, e, ao falar do processo de aprendizagem e da relação
entre ambos, deslocava-se para a vertente objetivista. Esse foi o funcionamento
discursivo da maioria das professoras. Caso falasse do desenvolvimento
pelo viés do objetivismo, teria que explicar como não
conseguia fazer com que seus alunos com deficiência mental se
desenvolvessem e aprendessem. As que já tinham uma concepção
de aprendizagem subjetivista, que entendiam o determinismo biológico
como mola propulsora do conhecimento para todos os alunos com ou sem
deficiência, não sentiam a necessidade de modificá-la
para falar do desenvolvimento. Duas professoras colocaram-se numa posição
interacionista em relação aos processos de desenvolvimento
e de aprendizagem e sua inter-relação, não tendo
o déficit como referência. Isto lhes permitiriam se deslocar
para a formação ideológica da inclusão não
fosse este discurso, no caso de uma delas, uma teorização
sobre tais processos não efetivada na sua prática, ou
a institucionalização da deficiência vivenciada
pela outra.
Em relação à questão da inserção
do aluno com deficiência mental no ensino regular, ficaram evidenciadas
duas formações discursivas - normalidade versus anormalidade
e diferença estabelecida por um padrão de referência.
Ambas compõem a mesma formação ideológica:
a da exclusão. Ficou evidente a não filiação
das professoras à formação ideológica da
inclusão pela explicitação da necessidade de atendimento
a diversas condições para que se desse a inserção
do aluno com deficiência mental na sala de aula regular. O aluno
com deficiência mental pode estar na sala de aula regular se...
Assim sendo, discursando sobre a inclusão, as professoras acabaram
reforçando a exclusão.
Analisando, na sala de aula, o funcionamento discursivo das professoras,
encontramos as formações discursivas objetivista, subjetivista
e interacionista, sendo que a objetivista arregimentou um maior número
de professoras. Observamos o modo como as turmas foram estruturadas,
os planejamentos, os objetivos, os conteúdos, a metodologia,
os recursos, a relação professor-aluno e a avaliação,
ou seja, todos os elementos que compõem a prática pedagógica.
Mais uma vez, o sentido latente encontrado foi o da exclusão.
Mesmo algumas professoras que fizeram um movimento discursivo em direção
a uma prática interacionista, o que lhes possibilitaria um rompimento
com a formação ideológica da exclusão, não
se deslocaram, de fato, discursivamente do sentido da exclusão
para derivar no da inclusão.
A nossa sociedade ainda apresenta as marcas da exclusão, cujo
sentido foi construído ao longo da nossa história e do
qual temos dificuldades de nos deslocarmos, por fazermos parte dessa
mesma sociedade.
Ip(Is(DM)) - A imagem que as professoras (Ip) têm de seus alunos
com deficiência mental (DM) faz parte da imagem que a sociedade
(Is) faz de tais sujeitos. Seu gesto se constitui do mesmo lugar da
sociedade.
Ip(Ipp(Is(DM))) - Da mesma forma, seu gesto se constitui do mesmo lugar
da concepção dos professores que lhe formaram (Ipp).
Ia(Ip(Ipp(Is(DM)))) - Assim sendo, vão formar seus alunos (Ia)
na mesma direção em que foram formados, caso não
se desloquem para outra formação ideológica.
Sendo predominante em nossa sociedade a visão estigmatizante
da deficiência mental, os professores dos professores, os próprios
professores e todos os alunos, sejam eles alunos com ou sem deficiência
mental, falam do mesmo lugar.
Deslocar o discurso desta formação ideológica da
exclusão nos aponta, entre outras opções, para
a necessidade de uma revisão dos cursos de formação
de professores, seja a inicial ou a continuada, e da escola, tal como
hoje se nos apresentam.
Sendo as professoras deste estudo formadas e tendo algumas delas sido
submetidas a uma formação continuada, seria de se esperar
que tivessem oportunidade de, nessa formação, conhecer
as suas próprias concepções, para poder assim movimentá-las.
Tendo observado que tal fato não aconteceu, concluímos
por uma ressignificação dos cursos de formação
de professores. Tais cursos precisam se organizar de tal forma que possam
explicitar a imagem que o professor tem da imagem que a sociedade tem
do aluno com deficiência mental, para que esse professor consiga
atravessar o imaginário social existente que determina sua relação
com o aluno com deficiência mental e o seu saber.
A tarefa de um educador é antes questionar os implícitos
do discurso pedagógico, atingir seus efeitos de sentido, permitindo
que as contradições da vida façam parte da escola.
O que se propõe, no caso, é construir uma escola dentro
de um paradigma capaz de ressignificar as práticas desenvolvidas
no seu cotidiano como exigência da reorganização
do trabalho escolar. Articular na formação dos professores
o saber fazer e o saber pensar para que tenhamos uma prática
inovadora, na qual os professores deverão saber compreender o
seu fazer e, assim, saber fazer mais do que saber transmitir o conhecimento
escolar acumulado.
A partir deste estudo, vislumbra-se a necessidade da construção
de um novo espaço discursivo sobre a deficiência mental
e, por conseguinte, sobre a da deficiência de um modo geral. A
exclusão como paradigma para o tratamento da deficiência
deve dar lugar a um novo paradigma, o da inclusão.
Que elementos, no entanto, nos farão trilhar os novos caminhos
da inclusão? Que dados e fatos marcarão esse movimento?
O ponto de partida está, indubitavelmente, no mergulho que o
ser humano vem realizando no sentido de repensar a sua própria
existência. Parece estar chegando a humanidade à conclusão
de que o desejo ressentido da normalidade por ela alimentado somente
acirrou ainda mais os fortes grilhões da segregação
social, com a suposição de que ao mundo bastariam os chamados
normais, restando aos desviantes o ostracismo e a marginalidade social.
O reconhecimento do outro como protagonista do teatro da vida constitui
o vetor da mudança de paradigma. O reconhecimento e o respeito
pela diversidade é mais do que um simples ato de tolerância,
é a afirmação de que a vida se amplia e se enriquece
na pluralidade.
Nesta perspectiva é que, a nosso ver, se deve ressignificar a
educação e, por conseguinte, o papel da instituição
escola e o da formação de professores. Faz-se necessário
apreender os "velhos" sentidos e, em especial, a sua movimentação
no dia-a-dia da sala de aula, para podermos derivar num "novo"
sentido.
Fizemos o desenho, mas ficam ainda os espaços em branco a serem
coloridos na constituição de uma nova forma de viver em
sociedade, uma nova forma de entender e de fazer o mundo, o que pressupõe
um deslocamento da formação ideológica da exclusão
para a da inclusão.
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